sábado, 15 de agosto de 2009

Ele para Ele

"Eu comecei a existir naquele dia que de repente avistei, Ele. Eu morava no quarto andar da rua Norton, no bairro Das Beiradas, na cidade dos Sem Nomes. Ouvia barulhos pelas ruas como se as pessoas estivessem passeando por dentro do meu apartamento. Todos os tipos de ruídos chegavam cedo a me despertar dos sonos e sonhos que me levavam pelas noites. Naquele dia de céu de um único azul, eu o avistei pela beirada da minha janela. Fiquei lá pendurada, mais ou menos uns vinte minutos, pelo menos psicologicamente. Se ele soubesse como gosto de homens suados de bicicleta vermelho do sol com vontade de existir. Ele surgiu assim, e naquela época eu nem sabia direito como eu gostava dos homens. Eu era um ser em fase constante de amadurecimento que nunca chegava. E foi nesse momento que comecei a duvidar se eu realmente entendia o sentido das coisas. Na verdade, não de coisas apenas, mas das palavras que davam nome as coisas.


Ele que se chamava Ele, dizia que sua profissão era ser entregador de felicidade. Por isso tinha uma bicicleta amarela, a barba marrom meio ruiva, e os pés de quem quer andar pelo mundo. Vivia por aí cantando com a vida daquela forma que unicamente ele sabia fazer, parecendo que não tinha sorriso, mas o sorriso aparecia pra quem soubesse ver. Era aparentemente um homem sem acesso. Era aparentemente um homem. Daí, eu descobri que ele era Ele.


- Quem é? Sei! Aha! Tá! Pode subir!


Primeiro o passo um, o dois, o três... os rastros do homem foram sendo fincados na escada, suas mãos marcaram as paredes dos corredores da rua Norton, e eu grudei o ouvido, estatelei as mãos na madeira, e fiquei ali condensada, esperando a melodia que saía daquele homem. Ouvi uma sinfonia inteira até ele chegar no quarto andar, apartamento 10. Abri a porta, virei à chave duas vezes, o cachorro encardido no chaveiro balançava pra lá e pra cá. Abri a porta, todo o meu cabelo na frente do meu rosto escondendo aquilo que era eu. Abri a porta, meus pés descalços gelados, o meu lábio preso pelo dente da frente. Abri a porta.


- Mulher, ei Mulher. É tu que agora vem viver cá nas bandas de cá?


Foi assim. Primeiro me desconheci, depois me vi adolescente, depois estiquei a coluna, saiu um duende louco gritando do meu peito, e eu me vi, parei na minha frente e fiquei olhando dentro dos meus olhos. Tinha um vazio, um não-lugar do mundo, uma certeza de existir, e aquele perfume de amora com pimenta.


Passou dez segundos, o lábio do Ele foi soltando a minha boca, o gosto do homem foi escorrendo pelos meus buracos, fui ficando tonta entorpecida drogada com gosto de choro, agarrei ele com minhas pernas, ouvi o universo gemer, e caí."

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